domingo, 23 de setembro de 2012

Primeira Palavra no Estadão

Nesse domingo (23/09) o jornal O Estado de São Paulo publicou, na página D4, uma reportagem da jornalista Bia Reis sobre o livro PRIMEIRA PALAVRA (il. Elvira Vigna, Abacatte). Além de mim, Bia ouviu Elvira e Ligia Cademartori. Gostei muito do que li. Gostei mais ainda de ver o livro ilustrado ganhando um espaço muito além dos suplementos infantis, sendo tratados como LITERATURA e não como mero entretenimento. Ponto para o Estadão e seus leitores. Abaixo, publico o texto na íntegra. Hakuna Matata!!!

Em “Primeiras Palavras”, Tino Freitas trata da violência urbana com poesia
(por Bia Reis, Estado de São Paulo, 23/09/2012)


Ela tinha 7 anos e não sabia ler, mas adorava entrar em um sebo que ficava no cruzamento de uma rua movimentada no centro da cidade. Gostava de olhar as enormes estantes de ferro que formavam um labirinto e guardavam os livros usados que faziam sua imaginação correr solta. Ela tinha 7 anos e não sabia ler, mas contava até 20. Era o número de dedos que havia em suas mãos e pés; a quantidade de passos que dava do semáforo até o sebo. Nunca havia ido à escola, porém, a necessidade lhe obrigara a aprender. Contava os trocados que recebia no cruzamento daquela rua movimentada.

A dura vida da menina que não sabia ler, mas desejou ganhar o livro da bruxa atrapalhada quando completou 8 anos, é também a realidade com a qual o escritor Tino Freitas se depara. Voluntário do projeto Roedores de Livros, em Ceilândia, periferia de Brasília, Freitas viveu o sofrimento de crianças cujos pais estão presos, foram mortos ou simplesmente desapareceram.

Amiga de um gato siamês que morava na livraria, a garota resolve, no seu aniversário, se dar o livro de presente – afinal, ninguém mais lhe daria nada. E arma um plano para consegui-lo. A partir dai, Freitas mistura desejo com violência urbana.

Primeira Palavra, recém-lançado pela editora Abacatte, vai na contramão dos outros livros do escritor. Nos anteriores, Freitas tinha no humor o ingrediente principal. Em Primeira Palavra, utiliza a dor e o sofrimento, com muita delicadeza e poesia.

“Muita gente acha que as crianças não devem ler histórias tristes, mas precisamos dar a elas a oportunidade de se emocionar. É importante entender o sofrimento do outro, mesmo que seja por motivos diferentes, e é esse sentimento que faz com que a criança estabeleça uma conexão com a personagem”, diz Freitas.

A escritora Ligia Cadermatori, doutora em Teoria Literária, destaca a coragem de Freitas para tratar de um tema tão pouco explorado na literatura infantojuvenil: a morte. “A morte só aparece de maneira estereotipada – são os avós que morrem – ou em narrativas folclóricas. Em geral, escritores e editoras estão preocupados em fazer livros para entrar em programas governamentais, ganhar prêmios, agradar professores, a família. A criança fica em último plano.” Freitas, diz Ligia, consegue inovar e surpreender.

Jornalista e músico, Freitas começou a escrever para crianças depois que entrou para o Roedores de Livros. “Fiquei com vontade de fazer minhas próprias histórias”, conta. Nas grandes cidades, entre a classe média, diz, ir à livraria se tornou um passeio em família, mas não é o que ocorre no Brasil profundo. Com o Roedores, Freitas faz um trabalho de incentivo à leitura com leitores com pouco acesso aos livros. Foi onde se descobriu contador de histórias e de onde retirou a estratégia de repetição, própria da literatura oral, que utiliza em Primeira Palavra.

Além de inovar no tema, o livro também apresenta um tipo de ilustração utilizada com pouca frequência em obras destinadas a crianças: a pintura a óleo. Ilustrar Primeira Palavra, conta a escritora e desenhista Elvira Vigna, foi desafiador. “É um texto difícil e, quando o li pela primeira vez, o que se destacou foi a violência urbana. Na segunda leitura, percebi que o livro também fala de como a educação pode transformar uma criança de rua.”

Elvira buscou na memória referências de sebos, com seus livros velhos e pouca luz, e se debruçou em uma “pintura violenta”, em uma clara referência à história. “Usei tinta a óleo com cores primárias, intensas, e pinceladas grossas sobre papel linho – ele não é suave, tem texturas.” Imperfeito, como a vida de uma criança que aos 7 anos não teve a chance de aprender a ler.

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